Joaquim olhava o relógio nervoso. Ele ainda não sabia dizer as horas, mas sabia que quando os ponteiros se uniam apontando para cima todo o barulho recomeçava. Sua mãe sempre o colocava para dormir pouco depois do jornal passar na tevê. Ela dizia que era para ele trancar a porta e não abrir, mesmo se o pai mandasse. Era melhor que ele dormisse. Mas Joaquim nunca conseguia dormir. Ele sempre esperava os gritos passarem para destrancar a porta, sair na ponta dos pés e ajudar a mãe a se levantar. Normalmente ela sempre acabava no chão. Ele não sabia porque era sempre assim. Ele queria ajudar a mãe, protegê-la. Ela não era de brigas, mas sempre apanhava calada por motivos que Joaquim nunca entendia.
Uma vez o pai tentou abrir a porta do quarto de Joaquim. Esmurrou a porta, gritou até que o menino a abriu. A mãe estava atrás do pai e quando viu a porta se abrindo se jogou na frente do filho e bateu a porta com força. Foi a primeira vez que ela gritou, "Fecha a porta, menino! Deixa trancada e vai dormir!". Ele fechou a porta correndo e ouviu muitas pancadas e gemidos do lado de fora. Horas depois, o pai foi dormir e Joaquim saiu do quarto para cuidar da mãe caída no chão. As roupas dela estavam rasgadas e espalhadas pela casa. Seu rosto estava tão feio quanto os rostos que apareciam nos pesadelos do menino. Tinha muita coisa vermelha e ele não lembrava de quando haviam pintado os móveis daquele jeito. Ao se aproximar da mãe, ela pegou em sua mão e sorriu como se tudo estivesse normal. Depois daquela noite ele nunca mais abriu a porta. Mas nem por isso as coisas se acalmaram. A rotina noturna se repetia quase todos os dias.
Só que hoje era diferente. Pela manhã, enquanto o pai dormia e a mãe estava fazendo o café, Joaquim se esbeirou pelas paredes até o quarto dos pais. Outro dia ele tinha visto lá dentro do guarda-roupas e foi quando teve a ideia. Mamãe nunca mais ia pedir que ele ficasse trancado no quarto. E ele mesmo nunca mais ia deixar que mamãe se machucasse tanto. Ele pegou a caixa e saiu correndo para o quarto. Guardou tudo junto com as meias limpas e foi para a escola. O dia passou rápido e logo chegou a noite. O jornal terminou e a mãe deu a ordem de sempre. Obediente, Joaquim se trancou no quarto e ficou esperando os ponteiros do relógio se unirem apontando para o teto. Logo logo papai chegaria. O pesadelo era pontual. O menino correu para a porta e ficou espiando pela fechadura. Papai não demorou. Chegou jogando uma garrafa nos pés da mamãe, que levantou e foi para a cozinha. Papai sentou em frente a tevê e quando mamãe trouxe a comida, ele jogou o prato no rosto dela e a puxou pelos cabelos arrastando-a pela sala. Joaquim foi até as meias abriu a caixa que roubara do quarto dos pais pela manhã e voltou a espiar. Mamãe continuava no chão e papai estava por cima dela segurando a garrafa que ele havia quebrado logo chegara. O menino destrancou a porta e ela rangiu ao ser aberta por suas pequenas mãos. Papai e mamãe se viraram para ele e ele sentiu medo. Papai parecia um monstro e mamãe trazia pânico nos olhos. "Joaquim volta pro quarto!", mamãe gritava. Papai se levantou e perguntou se o filho também queria brincar. Ele largou a mãe e foi em direção ao filho. Joaquim fechou os olhos e disparou. Papai caiu de joelhos e depois deitou no chão imóvel. Mamãe se levantou correndo, tomou o revólver da mão do filho e os dois se trancaram no quarto.
Mamãe não estava feliz. Ele fez tudo pensando nela, mas ela não parecia satisfeita. Ela pegou uma mala em cima do guarda-roupas encheu de algumas coisas e puxou o filho pela mão para fora da casa. "Mamãe, agora está tudo bem", ele pensava. "O que você fez, menino?", ela dizia sussurrando.
Eles saíram de casa correndo e ela jogou o revólver em um riacho no meio da estrada. Nesse dia entraram em um ônibus e fizeram um passeio de dois dias. A mãe chorava o tempo todo e fez o filho acreditar que tudo tinha sido só um pesadelo.
"Papai ficou em casa e a gente está indo embora. Você ficou dormindo até tarde e agora a gente vai morar em outra casa. Foi tudo um pesadelo e você está proibido de tocar nesse assunto de novo. Você sempre foi um bom menino, Joaquim...".
Mamãe dizia que tinha sido um sonho ruim, mas sonho ruim mesmo eram aqueles das outras noites. Com o tempo ele já não sabia mais se tinha sido verdade ou um pesadelo mesmo. O fato é que Joaquim nunca mais viu papai e nunca mais sentiu medo das setas do relógio apontando para o teto.